Vamos brincar de construir uma história? Deixo uma cheia de furos, de vazios. Preencham a narrativa como quiserem. Ressignifiquemos toda obviedade. Desviem os rios, represem lagos e lagoas. Lutem contra os oceanos. Nadem na terra ou na areia. Na lama tudo se impregna. Talvez seja isso o necessário. Deixem seu perfume. Mas não o perfume que se lambuzam, sim aquele que doam a cada abraço, compartilham internamente a cada beijo. Sim, eu quero suor e saliva. Trabalho passivo nesse texto. Mas só o façam se quiserem:
A apresentação
Era uma vez ninguém, em lugar nenhum, não fazendo nada. Esta deve ser a síntese da história: a nulidade. Ninguém estava em um beco deserto de seres, no meio da multidão, quando do nada escapou-lhe uma ideia. Uma dessas imperdíveis. Este era o fato, devo dizer. Morria de vontade de jogar fora aquela ideia. Caso contrario continuaria a viver por ela.
Começou a descer a ladeira que terminava no alto daquele morro. Era muito louco aquilo. Como subir era simplesmente descer? Não compreendia! Ou melhor, sabia sem saber. Aqueles inusitados pensamentos formigavam a cabeça; quase o levavam a loucura, a boa loucura. Já estava em transe. Todos os fatos acontecidos tarde naquela manhã lhe provocavam um misto de alegria e ódio. Muito misturados, mas não de forma a formar uma solução, mas um composto bifásico. Um riso sarcástico e quase sardónico era o que tinha. Sua vontade era atirar-se de lá do vale para o cume do morro. Do vale para o rio. Sua anestesiada consciência dizia estar em pleno sertão nordestino. O Sul é um deserto, mas a pampa não é pobre, repetia um verso de musica na sua cabeça. Todas as teorias que havia presenciado, agora eram fatos esparsos. Meras notícias de jornais.
Um telhado caiu de um homem. Este o descarregara. O homem quebrou a cabeça, mas o telhado é que sangrava. Nada mais importava naquele momento: toda a violência iniciara.
Telhado do gato caiu. Alpendre latia do cachorro furiosamente. O gato, cachorro comeria. O pensamento, que nunca foi seu forte, vinha cada vez mais confuso e desordenado. O autor ri. Como quem se vinga do personagem. Mas será que o autor se vinga do personagem? Ou é só mais uma traquinagem pra dificultar a tarefa do escrevente. Nada seria como dantes e abrantes. Abrantes deve ser um sobrenome. Entretanto, Dantes será tão somente um nome? Não importa, nada importa. Agora só vale a pena se é exportação. Os anões seriam presas dos gigantes. Toda moral havia mudado. Nada seria… desculpem! Nada seria normal. Todas as regras haviam sido quebradas infimamente. Toda a desordem havia sido reestabelecida.
A infância
Era ele o caçula de nove filhos, nascera dia nove de setembro às nove da manhã. Precisamente às nove e nove, dona Crioulina foi expulsa do hospital contra a vontade dos médicos que não puderam descansar porque tiveram que ajudar os seguranças a afugentar a paciente filha, a mãe, o pai e os outros exaltados filhos da mãe não tão pacientes quanto a irmã deles. O convenio estatal não havia sido pago, embora descontado na folha. Essas malditas transições de governo! Aquele bebê havia nascido bastante sadio. Tinha nascido com novecentas gramas. Se adquirisse um “Schistossoma mansoni” fruto de uma infecção hospitalar é provável que adquirisse uma barriguinha.
Mais um zé, não que este fosse seu nome, viveria naquele pútrido ambiente cercado por aterros sanitários. A prefeitura a vinte anos vinha prometendo os tirar dali, mas nunca… Apesar disto, a criança viveria num ambiente alegre com salvas de tiro ao anoitecer. Que outra história contar a uma criança? Havia de ser batizado pelo benemérito da favela, que por pura coincidência era bicheiro e traficante, Mauzinho Malvado. Um amor de pessoa que de vez em quando era contrabandista também. “Teria um grande futuro se cedesse ao sistema”, pensava seu pai, que ganhara uma Uzi de presente do chefe da favela.
Logo que com desenvoltura conseguiu andar, isso aconteceu cedo, aos três anos, foi logo posto nos sinaleiros do centro e áreas nobres pedindo esmolas, complementando assim o orçamento participativo da família. Até os sete anos foi responsável pela maior parte do dinheiro que entrava no bolso dos pais. Aos 11 anos, a família decidiu que pelo menos aquele filho teria a oportunidade de estudar. Foi matriculado no primeiro ano, com a opressiva ajuda do padrinho Mauzinho Malvado. Aos 15 terminou o primeiro grau galgando vários anos no supletivo. Aos 16, recebeu a oportunidade de ouro. Esquecesse o ensino médio. Seria o contador de seu padrinho. Aos 18 já tinha visitado várias penitenciárias e casa de prisão provisórias. Não tinha cometido um erro até então e nunca cometeria. Fazia a contabilidade das principais facções. Se errasse alguma vez comeria formiga tal qual um tamanduá: com a cabeça enfiada no solo. Aos 65 anos poderia se aposentar, mas nunca se aposentaria. Pois quem sabia o que ele sabia não gostaria de se aposentar. A aposentadoria seria como um fim. Ele amava viver. Eu também. Melhor dar fim a esse relato que dois escrivões me asseguraram.